Enchentes no RS: Desafios Jurídicos e Reconstrução Sustentável
As enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul escancararam falhas estruturais em políticas urbanas, ambientais e de prevenção a desastres. Este artigo analisa os desafios jurídicos pós-tragédia, com foco em regularização fundiária, reparação de danos materiais e morais, reconhecimento do dano ambiental individual e reconstrução urbana. Com base no Direito Ambiental, Urbanístico e dos Desastres, o texto propõe caminhos legais para assegurar justiça socioambiental e reconstrução segura das cidades.
As enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul em 2024 marcaram um dos episódios mais dramáticos da história recente do Brasil, com impactos humanos, sociais, ambientais e patrimoniais de proporções alarmantes. Além da tragédia humana e das perdas materiais, o evento evidenciou falhas estruturais no ordenamento territorial, nos sistemas de prevenção de riscos e na articulação entre as esferas de governo.
Em um cenário de emergência climática, os desafios jurídicos se tornam ainda mais relevantes, principalmente no que tange à regularização fundiária de áreas afetadas, à reparação de danos ambientais individuais — tanto morais quanto materiais — e à estruturação de políticas públicas voltadas à reconstrução das cidades de maneira ambientalmente segura, socialmente justa e juridicamente coerente.
Neste artigo, abordaremos quatro aspectos fundamentais para o enfrentamento jurídico pós-enchentes: (1) os impactos diretos na regularização fundiária; (2) os direitos dos proprietários de imóveis destruídos ou inutilizados; (3) o reconhecimento do dano ambiental individual e suas formas de reparação; e (4) os desafios normativos e institucionais para a reconstrução urbana, sob a ótica do Direito Ambiental, Urbanístico e dos Desastres.
Impactos das Enchentes na Regularização Fundiária
A tragédia revelou que muitos imóveis afetados estavam situados em áreas de risco ou de preservação ambiental, frequentemente à margem de qualquer processo formal de regularização fundiária.
A Lei nº 13.465/2017, que rege a Regularização Fundiária Urbana (Reurb), exige a realização de estudos técnicos em áreas de risco, com vistas à eliminação, correção ou administração dos perigos existentes. Nessas zonas, a regularização depende da implementação das medidas de mitigação recomendadas.
Além disso, o Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) veda a ocupação de Áreas de Preservação Permanente (APPs), como margens de rios, encostas e várzeas, salvo hipóteses excepcionais com interesse social e compatibilidade ambiental.
Assim, muitos imóveis atingidos pelas enchentes podem estar em situação jurídica de difícil regularização, exigindo soluções integradas que envolvam realocação assistida, uso de instrumentos urbanísticos e atuação conjunta de municípios, estados e União. É indispensável, ainda, observar os princípios da função social da propriedade e da cidade, conforme o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), como diretrizes estruturantes da política urbana.
Direitos dos Proprietários Afetados: Seguro, Responsabilidade e Reparação
Proprietários de imóveis destruídos ou inutilizados pelas enchentes têm direito à reparação integral dos danos, o que abrange diferentes esferas. No plano contratual, é comum que imóveis financiados possuam cobertura securitária específica contra desastres naturais. Nesses casos, os titulares podem acionar as seguradoras para exigir o cumprimento das obrigações indenizatórias previstas nas apólices.
Contudo, os prejuízos ultrapassam a esfera patrimonial imediata. Na hipótese de falha do poder público na prevenção do desastre — seja por ausência de obras de contenção, falhas no ordenamento urbano ou omissão na evacuação de áreas de risco — é plenamente cabível a responsabilização objetiva do Estado, nos termos do artigo 37, § 6º da Constituição Federal.
Nesse sentido, os proprietários podem pleitear judicialmente indenizações tanto por danos materiais (perda do imóvel, móveis, utensílios, etc.) quanto por danos morais, diante da violação do direito à moradia, à dignidade e à integridade psíquica.
Dano Ambiental Individual: Reconhecimento e Reparação Integral
A Constituição Federal, em seu artigo 225, consagra o direito de todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. A violação deste direito, especialmente em eventos como enchentes intensificadas por omissões estatais, pode ensejar a configuração do chamado dano ambiental individual. Trata-se de uma manifestação do dano ambiental que atinge, de forma direta, pessoas físicas ou jurídicas determinadas, gerando sofrimento, perda patrimonial, prejuízo à saúde, à estabilidade econômica e ao convívio social.
O Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido a possibilidade de cumulação de danos materiais e morais por danos ambientais de natureza individual, especialmente quando há perda da qualidade de vida e da saúde mental dos afetados. A reparação, portanto, deve ser integral, nos moldes do artigo 944 do Código Civil, sendo possível a formulação de ações individuais ou coletivas, com base na responsabilidade civil ambiental objetiva e solidária, nos termos do artigo 14, §1º da Lei nº 6.938/1981.
Desafios Jurídicos na Reconstrução das Cidades
A reconstrução urbana pós-enchentes impõe desafios normativos, institucionais e estruturais. Um dos principais obstáculos é a compatibilização da urgência na execução de obras com o rigor da legislação ambiental e urbanística. O reordenamento territorial de áreas atingidas exige obediência à Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (Lei nº 12.608/2012), que estabelece diretrizes para mapeamento de riscos, planos de contingência e ações preventivas de caráter permanente.
Além disso, a reconstrução deve incorporar os parâmetros do chamado Direito dos Desastres — um ramo jurídico em construção no Brasil — que busca integrar a proteção dos direitos fundamentais, a gestão de riscos e a governança participativa. A formulação de Planos Diretores adaptados ao novo cenário climático, a regularização fundiária com segurança jurídica, o reassentamento assistido com enfoque socioambiental e a responsabilização dos entes que contribuíram para o agravamento dos danos são exigências jurídicas incontornáveis. A reconstrução, para ser legítima, precisa ser inclusiva, transparente e orientada à prevenção de novas catástrofes.
Conclusão
As enchentes no Rio Grande do Sul em 2024 funcionaram como um divisor de águas na forma como o ordenamento jurídico e os operadores do Direito devem encarar a urbanização desordenada, a fragilidade das políticas habitacionais e a omissão histórica na gestão do risco ambiental. A regularização fundiária, o reconhecimento dos danos ambientais individuais e a reconstrução das cidades não podem mais ser conduzidos sob as mesmas premissas.
É necessário fortalecer os marcos normativos existentes, exigir a responsabilidade de entes públicos e privados, garantir a efetividade das normas constitucionais ambientais e promover a justiça social e ambiental como eixo de reconstrução. O Direito Ambiental e Urbanístico, neste contexto, deixa de ser uma instância apenas normativa para se tornar uma ferramenta essencial de garantia de direitos e de transformação estrutural da realidade urbana e humana brasileira.
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Conheça os autores
Adivan Zanchet
OAB/RS 94.838 || OAB/SC 61.718-A || OAB/SP 521767
Advogado e Professor especialista em Direito Ambiental pela Escola Verbo Jurídico, e em Direito Agrário e do Agronegócio, pela FMP – Fundação Escola Superior do Ministério Público. Sócio-fundador e CEO do escritório MartinsZanchet Inteligência Ambiental Para Negócios. Como Advogado Ambiental, tem sua expertise voltada para Responsabilidade Civil Ambiental. Sócio-fundador da Escola de Direito Ambiental. Sócio-fundador do Canal no YouTube e Podcast Inteligência Ambiental, maior canal do Brasil sobre a matéria de Direito Ambiental. Membro da União Brasileira de Advogados Ambientais (UBAA). Autor de diversos artigos, dentre eles “Responsabilidade Civil Ambiental: as dificuldades em se comprovar o nexo causal”.
Tiago Martins
OAB/PA 19.557 || OAB/SC 68.826-A || OAB/SP 518418
Advogado e Professor de Direito Ambiental com maior atuação no contencioso cível, administrativo e penal ambiental, além de prestar consultoria e assessoria ambiental. É Mestre em Direito e Desenvolvimento Sustentável: Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário do Pará – Belém. Especialista em Direito Público com Ênfase em Gestão Pública e Capacitação para o Magistério Superior pelo IBMEC São Paulo. Conselheiro Seccional Suplente – OAB/PA. Conselheiro Suplente no Conselho de Desenvolvimento Urbano de Belém/PA. Professor Universitário de Graduação e Pós-Graduação, focado em Direito Ambiental, Direito Administrativo e Direito Constitucional. Sócio-fundador da Escola de Direito Ambiental. Sócio-fundador do Canal no YouTube e Podcast Inteligência Ambiental, maior canal do Brasil sobre Direito Ambiental. Professor em preparatórios para concursos públicos e exame de ordem, com foco em Direito Ambiental e Ética Profissional. Membro da União Brasileira de Advogados Ambientais (UBAA).
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